A Sombra do Vento by Carlos Ruiz Zafon

A Sombra do Vento by Carlos Ruiz Zafon

Author:Carlos Ruiz Zafon [Zafon, Carlos Ruiz]
Format: epub
Published: 2009-04-30T02:41:53+00:00


Vaiste em sombras, pensei. Como viveste.

43.

Pouco antes das três da tarde apanhei o autocarro, no Paseo de Colón, que havia de me levar até ao cemitério de Montjuic. Através do vidro contemplava o bosque de mastros e bandeiras a adejar na doca do porto. O autocarro, que ia quase vazio, contornou a montanha de Montjuíc e tomou a rota que subia até à entrada leste do grande cemitério da cidade. Eu era o último passageiro.

A que horas passa o último autocarro? perguntei ao condutor antes de me apear.

Às quatro e meia.

O condutor deixoume às portas do recinto. Erguiase na bruma uma avenida de ciprestes. Até dali, no sopé da montanha, se entrevia a infinita cidade de mortos que tinha escalado a ladeira até ultrapassar o cume. Avenidas de sepulturas, passeios de lápides e vielas de mausoléus, torres coroadas por anjos ígneos e bosques de sepulcros multiplicavamse uns contra os outros. A cidade dos mortos era uma vala de palácios, um ossário de mausoléus monumentais custodiados por exércitos de estátuas de pedra putrefacta que se enterravam na lama. Respirei fundo e internei me no labirinto. A minha mãe jazia enterrada a uma centena de metros daquele caminho flanqueado por galerias intermináveis de morte e desolação. A cada passo podia sentir o frio, o vazio e a fúria daquele lugar, o horror do seu silêncio, dos rostos aprisionados em velhos retratos abandonados à companhia de velas e flores mortas. Daí a pouco consegui ver ao longe os candeeiros de gás acesos em redor da cova. As silhuetas de meia dúzia de pessoas alinhavamse contra um céu de cinza. Apertei o passo e parei no sítio aonde chegavam as palavras do sacerdote. O caixão, um cofre de madeira de pinho por polir, repousava no barro. Dois coveiros custodiavamno, apoiados sobre as pás. Perscrutei os presentes. O velho Isaac, o guardião do Cemitério dos Livros Esquecidos, não tinha comparecido ao enterro da filha. Reconheci a vizinha do patamar da frente, que soluçava sacudindo a cabeça enquanto um homem de aspecto derrotado a consolava acariciandolhe as costas. O marido, imaginei. Junto a eles havia uma mulher de uns quarenta anos, vestida de

cinzento e trazendo um ramo de flores. Chorava em silêncio, desviando a

vista da cova e apertando os lábios. Nunca a tinha visto. Separado do grupo, enfiado numa gabardina escura e segurando o guardachuva às costas, estava o polícia que me tinha salvo a vida no dia anterior. Palácios. Ergueu o olhar e observoume sem pestanejar uns segundos. As palavras cegas do sacerdote, desprovidas de sentido, eram tudo o que nos separava do terrível silêncio. Contemplei o caixão, salpicado de argila. Imagineia deitada no interior e não me apercebi de que estava a chorar a não ser quando aquela desconhecida de cinzento se abeirou de mim e me ofereceu uma das flores do seu ramo. Permaneci ali até que o grupo se dispersou e, a um sinal do sacerdote, os coveiros dispuseramse a fazer o seu trabalho à luz dos candeeiros. Guardei a flor no bolso do sobretudo e afasteime, incapaz de dizer o adeus que me tinha levado até ali.



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